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Você conhece o livreto eversão? Ele foi lançado e distribuído gratuitamente em agosto de 2016 e conta com poemas inspirados nas histórias de pessoas que compõe o cotidiano da cidade, principalmente da Praça Tamandaré.

Foi escrito e organizado por Aline Bastos Mendes e teve apoio do Liber Studium, da FURG, da Prefeitura Municipal do Rio Grande e do Partage Shopping.

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O SENHOR E O TEMPO

Sigo

nesse diálogo mudo com o tempo.

Questiono esse Senhor carrancudo

que fez, dos meus dias de menino?

 

Quando pulava alegremente

de uma árvore para outra.

Culpa do relógio enferrujado

que travou minhas pernas

destilando em minha face marcas,

que não posso remover.

 

Sigo

Nesse diálogo sigiloso

Onde o descontentamento com o tempo é perceptível

Não pelas coisas feitas na flor dos anos.

Sim, pelas coisas que não posso mais fazer.

 

Me deixa aqui, o tempo.

Observando no parquinho as crianças brincando

Ditando uma ordem que em breve não poderei cumprir

A ordem de apenas seguir...

CULTURA MATERIAL

Eu tenho em casa

uma pequena xícara quebrada

tem suas dimensões específicas

e uma coloração adequada

 

Já insisti na colagem de suas partes

já insisti na junção das duas metades,

mas ela prefere estar partida

ela prefere não ser mais utilizada.

 

Eu que sou insistente

peguei a pequena xícara quebrada

coloquei, cuidadosamente, sobre a mesa

de uma tal maneira que ela parece nova.

 

Ocupei seu conteúdo totalmente com flores...

No medo de perder com ela as minhas memórias,

eu a transformei num vaso.

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LICENÇA POÉTICA

Como poeta eu afirmo:

​

um objeto vive.

um objeto morre.

um objeto sente.

um objeto-gente.

NUANCES DE DIA

Todos os dias

ele observa o Coreto

algumas voltas na praça

entre as árvores e os bambuzais

 

Com as mãos no bolso

Esse senhor observa as cenas

de amor

de raiva

de medo

cenas do cotidiano.

 

Ele fez parte dessa cena por anos,

mas hoje, é apenas um observador.

 

Quando o amor se vai,

fica apenas a saudade

e o lugar dela

é aqui.

 

NUANCES DE NOITE

Já não existe mais o sol

Os automóveis circulam pouco

A vida cotidiana é silêncio

O que ouço é o balbuciar da noite.

 

É aquela moça que não pode ser ouvida

Fazendo sua poesia noturna

Compondo essa história

Escrevendo essas linhas tensas.

Quando a luz se vai

fica apenas essa moça

e o lugar dela

é aqui.

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COISA DE MENINA

Em minhas memórias tentava atingir as notas

da canção produzida por aquele balanço

Era verão, eu ouvia minha mãe dizendo:

“cuidado!” “não brinque disso” “não faça aquilo”

 

Quando menina

eu tinha alguns pensamentos medonhos

- eu queria ter a liberdade de um menino -

poderia me sujar

poderia jogar bola

poderia ser um herói ou um ladrão

 

Eu estava cansada de ser uma boneca!

Era uma criança cheia de ideias,

mas elas foram abafadas ao longo dos anos.

 

Hoje, mulher

eu tenho alguns pensamentos medonhos

quando volto pra casa, à noite, penso:

- eu queria ter a liberdade de um homem -.

CASINHA DE LATA

Olha!

É feita de lata aquela casinha

aquela, com um enorme casarão ao lado

a casa de lata está quase caindo

mas só o casarão é patrimonializado.

 

Olha!

A casa de lata é igual outras casas

não tem conteúdo clássico,

não tem estilo erudito.

Me disseram que a salvaguarda tem caráter estético,

mas quem dita, afinal, o que é mais bonito?

 

Olha!

Que coisa estranha é esse tal tombamento

como ser humano eu quase me desoriento

será que, se eu pagar mais caro

posso, um dia, tombar o sentimento?

 

(Homenagem as casas forradas com lata do município de Rio Grande, em especial, da Ilha dos Marinheiros. Em uma delas, passei grande parte da minha infância).

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EVERSÃO

Meu amor,

esse é o exato momento

para terminar aquilo que começamos.

Nosso início tem tantos anos

que mesmo que eu me esforce muito,

não consigo lembrar.

 

Meu amor,

pare de olhar para esse relógio!

Em algum momento do dia tudo irá acabar

já que não existe mais nada

que ainda permaneça erguido.

 

Meu amor,

nem mesmo a árvore centenária aguentou.

Ela está seca e seus galhos estão morrendo

estamos todos nós

em um estado profundo – evertendo.

 

Meu amor,

os prédios em nossa cidade estão corroídos

as praças, quase todas, estão sucumbindo

nenhuma delas respira a nossa antiga canção.

 

Meu amor,

o que há entre nós é um jogo

eu sinto muito, mas nós vamos perder.

Se ninguém compra sentimentos baratos,

o que vai ser de nós quando a poesia também everter?

QUARENTENA

Meus passeios e meus pés estão em quarentena

meus tênis e minhas meias estão em quarentena

Meu irmão menor, quarentena.

Minha mãe, mais de 60: quarentena.

 

Estamos todos do lado de dentro

querendo o lado de fora

atravessar o coreto correndo

observar o jogo de dama

comprar uma roupa usada.

 

Mas todos estão em casa (ou deveriam estar).

O mundo, me parece doente

não sei se irá curar.

Saudade dos pássaros (que detestava)

saudade da música (brega) que tocava

saudade de um leão

de um banco

de um tempo pra RESPIRAR.

 

Saudade de compor a vida da praça

ainda que minha passagem por ela fosse tão pequena

acho que mesmo sólida e fixa

a praça também está em quarentena.

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Os desenhos que acompanharam os poemas não estão no livreto. Foram feitos por Ana Clara Acosta Vieira, exclusivamente para esta exposição virtual.

O poema Quarentena também foi feito recentemente.

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